domingo, 11 de agosto de 2013

ENTREVISTA DE SOFFIATI É UM CHAMADO À REFLEXÃO




Arthur Soffiati: “Desde 1989, a cultura de Campos é populista e autoritária”

Desde que se iniciou o ciclo do “garotismo” em Campos, há quase 25 anos, a cultura pública de Campos é populista e autoritária, por razões não apenas políticas, mas visando também a prática de ilícitos financeiros. A afirmação é do professor, escritor, ambientalista e imortal da Academia Campista de Letras (ACL) Aristides Arthur Soffiati, que historiografou a origem de muitas das práticas e rumos da cultura do município, questionadas no debate gerado pela denúncia de censura à peça “Bonitinha, mas ordinária”, de Nelson Rodrigues, no Trianon, por supostos motivos religiosos da prefeita Rosinha (relembre o caso aqui e aqui, que ganhou mídia nacional aqui e aqui). Aliás, para Soffiati, a discussão é bem mais importante que seus motivos. Nela, não apenas a Prefeitura e Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) são vidraça, mas também o Ministério Público Estadual local, por não fiscalizar os indícios de superfaturamento nos shows contratados pelas duas primeiras. Também os produtores de cultura de Campos e as universidades aqui instaladas não escaparam da análise crítica. Para Soffiati: “A gente pensa que os artistas e intelectuais invariavelmente têm caráter e comportamento ético. Não é bem assim”.
Folha Dois – Em comentários na blogosfera e nas redes sociais (aqui), você disse estar acompanhando a discussão da cultura de Campos, a partir da denúncia de censura à peça “Bonitinha, mas ordinária”, de Nelson Rodrigues, por supostos motivos religiosos da prefeita Rosinha. O que tem achado do debate?
Arthur Soffiati - Entre os historiadores, a última discussão importante ocorreu há 30 anos, girando em torno da escravidão no Brasil. Hoje, os historiadores só querem produzir artiguinhos para publicar e pontuar no Currículo Lattes. A falta de discussão empobrece a vida cultural. Assim, mesmo que o debate em torno da censura da prefeitura por supostos motivos religiosos da peça “Bonitinha, mas ordinária” esteja pautada por uma polarização maniqueísta, ela tem o mérito de oxigenar nosso anêmico meio cultural.
Folha – Você citou o pensador francês Abraham Moles, que definia as políticas públicas de cultura como sendo informais, populistas, autoritárias e/ou democráticas. A partir do primeiro governo Anthony Matheus, em 1989, você identificou a cultura pública de Campos num misto entre populista e autoritária. Por quê? Como torná-la democrática?
Soffiati - Ao contrário de Zezé Barbosa e dos prefeitos anteriores a ele, Garotinho entendeu que é possível fazer política partidária com cultura. Tão logo ele assumiu, os produtores de cultura pediram-lhe uma reunião informal. Eu estava lá. Todos tinham ideias a expor. Garotinho encerrou a reunião dizendo que promoveria um grande encontro de rock. Já de início, ele se mostrou autoritário, ao não querer ouvir ninguém, e populista, propondo um evento tipicamente populista. Houve também um evento formal no Palácio da Cultura. Fui convidado a falar. Propus um amplo plano de cultura para discussão. Garotinho, então, me perguntou se eu sabia o que era o nazismo. Respondi que sabia melhor do que ele, na condição professor de história. Entendi, então, que seria difícil discutir cultura no seu governo e que o nome de Hitler era bastante emblemático naquele contexto. Uma política de cultura democrática é discutida com todos os interessados e até mesmo com a população. Ela é construída coletivamente, ainda que sua formatação final seja efetuada por especialistas. Ela requer diálogo permanente entre governo e sociedade, sobretudo com os envolvidos diretamente com cultura.
Folha – Em sua classificação da política municipal de Campos como populista, você afirmou que ela seria usada como maneira de ganhar dinheiro ilícito. Por grave, poderia exemplificar a denúncia, neste ou em outros governos? E, se realmente existe, por que o Ministério Público e a Justiça nada fazem?
Soffiati - Repito apenas o que leio na imprensa escrita e eletrônica e o que consta no próprio site da Prefeitura: valores muito acima dos tabelados para a contratação de cantores, grupos de teatro e outros. Como a política cultural desde a primeira eleição de Garotinho é populista, as somas aplicadas em cultura foram crescendo progressivamente. Muitas perguntas sobre recursos aplicados em cultura estão sem resposta. Então, lanço outra pergunta: por que o Ministério Público Estadual não instaura um inquérito civil público sobre a caixa preta da cultura? Ele não precisa de denúncia específica, embora sua postura tenha sido a de inércia, característica do Judiciário. Bastam as notícias de jornal. Mas, se precisa, entendo que os produtores culturais poderiam encaminhar notícia ao MP. Se não sabem redigir uma notícia, comprometo-me a fazê-la desde que os interessados a assinem em conjunto.
Folha – Acredita que as contratações municipais da banda A Massa, cujo percursionista é marido da presidente da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, são encarados como assunto tabu na cultura pública de Campos? Por que essa pergunta não é feita ou respondida?
Soffiati - De fato, a banda “A Massa” deve ser sagrada. Como vivemos numa cultura dessacralizada, creio que a pergunta deve ser colocada preferencialmente pelos agentes de cultura e respondida pelo poder público.
Folha – Você também citou sua passagem como gestor público de cultura, no último governo Zezé Barbosa. Como foi passar da teoria à prática? A experiência serviu para mudar sua maneira de ver a cultura, especificamente a de Campos? Em quê?
Soffiati - Fui provocado a sair da condição de estilingue para assumir a de vidraça, figura, aliás, que considero muito batida. Aceitei. Eu tinha algo a dizer. Inclusive, com o esboço de uma política cultural democrática, convidei os agentes de cultura para uma reunião. Notei resistência da parte deles, talvez por eu não ser considerado artista ou produtor de cultura, talvez por estar no poder. Vários deles, posteriormente, ocuparam cargos em governos. Lembro aqui o nome do campista Danilo Santos de Miranda, que coordena a cultura do Sesc/São Paulo. Ele não é artista, mas, como pensador da cultura, sabe muito bem o que fazer, inclusive melhor do que os ministros da cultura. É discutível pensar que só artistas entendem de cultura. Minha experiência enquanto gestor de cultura reforçou a concepção que tenho de política cultural democrática, mas me mostrou que é muito difícil, talvez impossível, implementá-la em qualquer instância da federação. O Brasil passou de colônia a uma monarquia centralizada, em que o imperador enfeixava em suas mãos dois poderes dos quatro definidos pela Carta Constitucional de 1824. Na República, adotou-se o federalismo, mas nossa tendência, nas crises, é retornar ao unitarismo do Império. Nos Estados Unidos é o contrário: de uma confederação, avançou-se para uma federação. Sempre que há crises graves, a tendência é voltar ao confederalismo. Em resumo, admito que é muito difícil ser democrata num contexto cultural autoritário.
Folha – Seu filho, o professor Gustavo Landim Soffiati, também entrou no debate, lembrando (aqui) a ironia de um grupo político que se formou no teatro, se lançando à vida pública na ocupação do Teatro de Bolso, passados quase 25 anos no poder, tenha na cultura um de seus calcanhares de Aquiles. No caso, onde falhou a imitação entre a arte e a vida?
Soffiati - Garotinho sempre teve um perfil autoritário. Conheço-o desde o tempo em que tinha o apelido de Bolinha, no Liceu. Até a maneira de ele fazer oposição é arrogante, usando para os adversários o deboche e a ridicularização. No princípio, ele enganou os democratas, mas depois de tanto tempo na vida pública, dentro ou fora do poder, não foi mais possível ficar no armário. Em síntese, no tempo em que ele militou no teatro de Campos e na literatura de cordel, foi possível ocultar sua vertente autoritária e populista. Vinte e quatro anos depois, não lhe é possível mais usar máscaras. Hoje, ele mostra, de fato, qual a sua visão de cultura, mesmo no momento de fazer poesia para sua esposa.
Folha – Inegáveis os anos de militância que pessoas como Orávio de Campos Soares, João Vicente Alvarenga e Maria Helena Gomes, entre outros, têm na história cultural de Campos. No poder público, eles não poderiam fazer a diferença no sentido positivo?
Soffiati – Tive grande prazer em assessorar Diva Abreu Barbosa no departamento de Cultura. Acho até que a carta branca que ela me deu chegava a ser transparente. Se dependesse dela, tudo o que sonhei e planejei seria colocado em prática. A Casa de Cultura José Cândido de Carvalho, em Goytacazes, foi uma gota d’água no oceano dos nossos planos. Mesmo almejando ser um Titanic, esbarrei no iceberg de Zezé Barbosa e naufraguei. É em momentos como esse que se mede a estatura moral do gestor público. Sei que não é possível colocar tudo em prática no tempo exíguo de um mandato, mas se não é possível colocar nada, cabe pedir o chapéu e deixar o barco. Permanecer nele dá a impressão de gosto pelo poder ou pelas vantagens que ele proporciona.
Folha – Mesmo ressalvando não querer generalizar, você citou a entrevista com o professor e escritor Adriano Moura (aqui) para também bater forte naqueles que trabalham com cultura em Campos, classificando a atuação destes como “medíocre” e “partidária”. Pode explicar por quê?
Soffiati - Desde que vim morar em Campos, em 1970, noto grandezas e misérias no ambiente cultural do nosso município. Agora, generalizo: em todos os municípios brasileiros, esta é a realidade. Só que, nos grandes centros, as grandezas aparecem mais que as misérias. Aqui, além dos desentendimentos mesquinhos e crônicos entre os agentes culturais, há também a postura medíocre do ególatra, que se considera superior aos outros pelo seu conhecimento. Não há a tradição do estudo, do diálogo profícuo, da autocrítica, da reflexão. Os artistas acham que basta se apresentarem, não buscando compreender em que processo se inserem, como bem demonstrou o crítico literário Alcir Pécora com relação à literatura brasileira da atualidade. Essa mediocridade favorece a bajulação ao poder e a partidarização do intelectual e artista. Ele precisa do poder para se realizar, não para servir à sociedade. Assim, fica fácil para o poder atrair e sustentar o agente de cultura. Ele está no poder não para atender ao público, mas para realizar suas ambições pessoais e para ter uma fonte de renda. Claro que não generalizo, mas o perfil dominante é este.
Folha – Até que ponto a reação dos artistas de Campos, a partir da denúncia de censura à peça de Nelson, pode ter sido, pelo menos em parte, uma tentativa de quem estava de fora das benesses governamentais de forçar e/ou encarecer a venda do passe à cooptação pública municipal?
Soffiati - Minha resposta seria condenada pelo subjetivismo, já que não é possível conhecer as reais intenções dos manifestantes. Contudo, tenho dúvidas se algum manifestante agiria de forma diferente se estivesse na condição de gestor, pois, no poder, nossos intelectuais e artistas costumam defender seus patrões. Sei também de agentes culturais que não se incomodam com o caráter religioso de promoções se estiver no poder. A gente pensa que os artistas e intelectuais invariavelmente têm caráter e comportamento ético. Não é bem assim.
Folha – Além das supostas motivações da classe artística local, você questionou também sua formação, ao afirmar que para trabalhar com a produção de cultura, além do desejo, é preciso saber se situar em suas várias manifestações. Neste particular, em que e como a Prefeitura bilionária e as universidades locais poderiam contribuir?
Soffiati - A Prefeitura bilionária poderia e deveria muito bem promover oportunidades para o aprimoramento do artista e do intelectual. A universidade pública idem. Continuarei com minha franqueza nesta resposta. O poder público quer cultura pronta e rasteira. É mais fácil comprar eventos do que promover o aprimoramento dos agentes de cultura. Além do mais, eventos movimentam somas muito mais vultosas do que cursos, o que favorece práticas ilícitas. Se a política cultural é populista, claro que um evento com artistas de renome nacional e internacional rende mais voto do que um curso. Já a universidade pública, onde atuei durante muitos anos da minha vida, cada vez mais se fecha em torno de si mesma, alheia ao mundo exterior. Mas há um traço crucial: os agentes de cultura pleiteiam cursos, mas são muito vaidosos para segui-los. Acham que conhecem muito bem o seu ofício.
Folha – Você também citou vários nomes da cultura goitacá que se destacaram fora da planície. Em termos culturais, Campos seria como o Brasil no futebol, obrigada a exportar seus melhores valores para centros mais desenvolvidos, para que lá eles possam alcançar seu esplendor? Como estancar esse processo? Não há quem brilhe mesmo permanecendo aqui?
Soffiati – De fato, a província restringe os horizontes do intelectual e do artista. Numa entrevista, perguntaram ao falecido violoncelista soviético Mstislav Rostropovich, um dos maiores do mundo, por que ele deixou seu país. Ele respondeu que a União Soviética proporcionava, gratuitamente, uma educação básica excelente, mas depois podava a liberdade do artista. Por isso, ele deixou seu país. A província não proporciona nem educação básica de qualidade nem oportunidade de expressão. Assim, quem tem coragem e deseja voos mais altos acaba partindo. A situação é diferente da do craque de futebol, cujo passe é comprado por grandes times do exterior. O intelectual e artista potencial têm de arriscar. Tomo o caso do meu amigo Carlos Eduardo Berriel. Ele saiu de Campos sem dinheiro, passou muito tempo comendo macarrão e farinha, tocou bumbo no Exército da Salvação para minimamente se sustentar. Hoje, é professor da Unicamp e um dos intelectuais mais respeitados do Brasil. Ele ama a província, mas não pode retornar a ela, a menos que se aposente. Por outro lado, considero aquele que fica também um corajoso. Foram corajosos aqueles que enfrentaram a ditadura militar sem sair do Brasil. Eles não se beneficiaram do exílio em centros culturais de excelência no exterior. Ser artista e intelectual na província não é fácil, mas é possível se o agente de cultura empreender uma reflexão permanente de sua condição de criador de cultura. Isto vale para os governos.
Folha – Se nem os antropólogos, que se dedicam a estudar a cultura, conseguiram ainda defini-la, como podemos tentar fazê-lo? Em sua opinião, por que o tema é sempre tão complexo?
Soffiati - É preciso distinguir dois sentidos de cultura: aquela objeto de estudo dos antropólogos e aquela entendida como uma dimensão das sociedades complexas. Para o antropólogo, tudo o que uma sociedade produz é cultura. Ele tanto pode estudar a cultura de povos nativos quanto a cultura cotidiana dos moradores de Campos. Já o agente de cultura promove o pensamento, a literatura, as artes visuais, o teatro, a música, a proteção do patrimônio cultural. Nos dois casos, a questão é complexa em si mesma. Retirar-lhe a complexidade significa reduzi-la e empobrecê-la. É salutar que existam várias correntes buscando interpretá-las. É democrático que as várias correntes dialoguem e discutam.
Folha – Em relação à cultura de Campos, você escreveu que não estamos diante de um filme entre bandidos e mocinhos. Neste sentido, estaríamos mais para um western de Sergio Leone do que de John Ford?
Soffiati - Pessoas adultas e maduras sabem que o maniqueísmo do profeta Mani só existe no plano metafísico. No mundo sublunar, Sergio Leone se aproxima mais da realidade do que John Ford, com toda a genialidade deste, pois, para o primeiro, o mocinho tem algo de bandido e vice-versa. Minha análise não é moralista a ponto de esperar dos agentes de cultura uma postura ética exemplar. Mas tudo tem limite.

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